Durante a cerimônia da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesse domingo (1º), o público presente gritava um audível "Sem anistia".
A palavra de ordem reflete uma demanda de apoiadores de Lula para que o agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) responda na Justiça por eventuais suspeitas de crimes - e para que não seja anistiado caso seja condenado. Para especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, entretanto, as chances reais de que ocorra algum tipo de anistia para Bolsonaro no caso de uma condenação, levando em conta as possibilidades de perdão para crimes estabelecidos pela legislação brasileira, são hoje baixíssimas.
Ao deixar o mandato, dando lugar ao novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro perdeu o foro privilegiado e passará a responder a eventuais processos na Justiça comum.
Ainda que Bolsonaro não seja atualmente réu em qualquer processo judicial e nem tenha sido condenado, as investigações que pairam sobre ele e a tensa rivalidade política no país levaram personalidades da vida pública a sugerir, desde a campanha eleitoral de 2022, que fossem levadas em consideração possibilidades de perdão para eventuais crimes cometidos durante o mandato em nome da "pacificação" do país.
Bolsonaro enfrenta investigações, autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e conduzidas pela Polícia Federal (PF), sobre diversas supostas irregularidades, como por exemplo a de interferência na própria PF e o vazamento de dados sigilosos. Uma dessas investigações teve movimentação recente: a PF concluiu, no fim de dezembro, que Bolsonaro atentou contra a paz pública e incitou a prática de crimes durante a pandemia — mas deixou a decisão pelo indiciamento com o STF.
Ainda não está claro qual deve ser o rito desta investigação, agora que o ex-presidente não tem mais foro privilegiado.
Em setembro, o ex-presidente Michel Temer (MDB) havia afirmado em um evento dos jornais O Globo e Valor que o presidente eleito — naquele momento, o resultado não havia sido definido ainda — deveria trabalhar pela "pacificação" do país "em um grande pacto nacional".
A reportagem pediu uma entrevista ao ex-presidente Temer sobre o assunto, mas foi informada que não seria atendida por indisponibilidade de agenda.
Já o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello afirmou em novembro ao portal de notícias UOL que o presidente eleito deveria agir pela busca do "entendimento para combater as mazelas do Brasil" e poderia conceder a graça a Bolsonaro. A graça é uma das modalidades de perdão a crimes previstas no Brasil, junto com o indulto e as leis de anistia (entenda abaixo). Em entrevista à BBC News Brasil por telefone em 20 de dezembro, Mello ratificou sua posição.
"Seria pela pacificação do país. E para afastar esse antagonismo reinante que é muito ruim, é péssimo", afirmou. "É um ato soberano do presidente da República (a concessão da graça). Que o empossado em 1º de janeiro perceba essa possibilidade, mas vamos ver. As paixões prevalecem, aí não sei se é provável. A essa altura, não acreditemos em Papai Noel", brincou o ex-ministro.
A BBC News Brasil pediu posicionamentos do PL e da assessoria de imprensa de Lula sobre as propostas de "anistia" a Bolsonaro, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Pelo menos a olhos vistos, nenhum dos dois lados — no entorno do ex-presidente e do novo presidente — demonstrou até agora estar minimamente mobilizado para seguir adiante com a aplicação de alguma das modalidades previstas na lei brasileira em favor de Bolsonaro.
Entenda abaixo os tipos de perdão a crimes existentes no Brasil e os obstáculos que eles apresentam no caso de Bolsonaro.
"Isso vai significar, talvez possa significar, a hipótese de anistias do passado", disse Temer, citando o Pacto de Moncloa, que marcou a redemocratização da Espanha em 1977. "Quando falo nesse pacto de pacificação, estou imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que não é. Mas seria um gesto de harmonia no país."
Segundo a Constituição, o presidente da República tem o poder perdoar o cumprimento da pena de alguém que tenha sido condenado judicialmente. O Código Penal tipifica os dois meios para isso: o indulto e a graça.
"O indulto e a graça são faces da mesma moeda. A graça presidencial seria o que a gente chama de indulto individual. O indulto é o termo que nós temos usado para nos referir ao indulto coletivo, quando o presidente da República, por exemplo no indulto natalino, libera do cumprimento da pena de prisão em determinadas condições", explica Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio, doutor em Direito Público e advogado.
"O presidente da República não tem o poder de afastar a natureza criminosa. A pessoa continua tendo sido condenada, continua sendo considerada criminosa, mas ela não vai cumprir a pena."
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o advogado e doutor em Direito Davi Tangerino avalia que a possibilidade de Bolsonaro ser agraciado é "muito improvável".
"Primeiro, porque não tem condenação. Depois, porque acho que politicamente é improvável que o Lula tome uma providência dessa natureza. Exceto, claro, que tivesse um clima de convulsão social para isso", afirma Tangerino.
Durante a campanha eleitoral, em setembro, o próprio Lula lembrou que seu oponente não foi condenado e afirmou que Bolsonaro teria a "presunção de inocência que eu não tive" em eventuais processos judiciais.